Saturday, June 24, 2006

com ou sem cogumelos?

Era já a segunda vez, desde a suposta derradeira operação, que entrava naquela sala esverdeada, cheia de luzes brancas e com um cheiro incómodo a medicamentos. Lá dentro reencontrara a doutora que substituiu o meu médico, que foi de férias duas semanas antes. Apesar do crescendo nervosismo que crescia em mim, aparentava por fora uma calma invulgar num rapaz de 15 anos que estava prestes a ser submetido a uma ainda desconhecida decisão. Faziam já duas semanas que tivera sido operado ao pé naquele hospital que, durante mais de metade da minha vida, considerei como a minha segunda casa. Ainda hoje sinto o cheiro e ouço os barulhos daqueles corredores que sempre pareceram assombrados de ânsias, vontades e tristezas, o bater de muletas no chão, o som das cadeiras de rodas a passar. Corredores esses que muitas lágrimas carregadas de incertezas enxugaram e talvez por isso mesmo eu tinha medo de os atravessar. Foi num desses corredores que, passadas essas duas semanas da operação, eu voltava a passar para decidir as minhas férias de verão.
Tinha acabado as aulas pouco depois do fim de Junho e tinha passado para o décimo ano com a distinção de um bom aluno exemplar que sempre fui. Fiz a décima operação ao pé esquerdo que atormentava a minha vida e a vida dos meus pais desde a minha nascença. Durante treze anos e meio (a primeira operação foi aos 14meses), vivia em minha casa a incerteza do fim desse tormento. Incerteza essa que mais uma vez me acompanhou naquela sala de consultas. Enquanto me tiravam o gesso para ver como o meu pé estava, apenas uma coisa me passava pela cabeça: a promessa que eu tinha feito ao meu primo de que, quando eu chegasse a casa, encomendaríamos uma piza por telefone e ficaríamos a ver um filme ou a jogar playstation, pelo que me escapou da boca, enquanto a serra da máquina se preparava para perfurar aquela camada dura de gesso, «Hoje não vamos demorar muito, pois não? É que eu prometi ao meu primo que íamos comer uma piza quando eu chegasse». «Esperemos que não», dizia um médico que nunca tinha visto e que entretanto chegara. A vontade de voltar a casa e poder estar com o meu primo, (que adorava piza), o meu melhor amigo e com quem me dei sempre bem, seria talvez o meu refúgio ao pensamento negativo que seria ter de ficar no hospital a fazer tratamento.
Todos os pequenos movimentos efectuados pelo enfermeiro ao serrar e tirar o gesso, ao cortar e tirar a ligadura, ao tirar as gases, foram atentamente observados por mim e pelo médicos. Eu também queria ver. Não me deixavam. Era através da expressão na cara dos médicos que eu ia percebendo o que se passava. Parecia tudo bem, até me tirarem as gases que tapavam a costura. Rapidamente me sentei na maca e vi o porquê das suas expressões faciais terem mudado tão repentinamente como quem pisca os olhos. O ponto infectado que há uma semana atrás tinha sido alvo de comentários médicos como «Isto é normal. Para a semana estás bom. Não é preciso preocuparem-se. Isto não é nada», tinha, durante uma semana, infectado todos os outros pontos e feito com que a costura ficasse toda aberta. Rapidamente me voltaram a deitar. Na minha cabeça só passava um pensamento: a promessa que eu tinha feito ao meu primo. A única coisa que eu mais queria naquele momento era ir para casa e comer a piza com o meu primo. Já sabia o que me esperava. Anos e anos em hospitais fizeram com que percebesse a realidade daquele momento apenas pelas suas expressões. Os comentários seguintes feitos pelos médicos presentes fizerem aparecer em mim toda a tristeza e irritação da ideia de ficar no hospital a fazer tratamento, escondidas apenas pela vontade de ver o meu primo a comer a piza que eu tinha prometido. Desfeito em lágrimas e compreendendo a realidade que ali se passava, fazia um único pedido: deixarem-me ir a casa comer a piza com o meu primo que eu depois voltava. Nada feito. Falava com os médicos enquanto, pela face, caíam lágrimas e lágrimas encarecidas de raiva por não poder ir a casa apenas por duas horas. Os médicos diziam que seriam apenas duas semanas, mas eu, ainda apenas uma criança, sabia que isso não era verdade. Um mês pelo menos, pensava eu. Palavras de conforto choviam em cima de mim, misturadas com expressões de espanto de enfermeiros e médicos que entravam pela sala e olhavam o meu pé a descoberto com a costura aberta.
A raiva e o sentimento de revolta apoderaram-se então das lágrimas que persistiam em sair e cair pela cara. «Porquê?!», gritava eu para mim mesmo. «Porque é que nunca mais fico bom?». Os treze anos e meio de operações e os dez anos de consciência pura do problema que me acompanhava davam agora lugar a um sentimento de rebeldia para com o mundo e com a vida. Nunca tinha feito nada a ninguém e o tormento persistia.
Sempre fui uma criança alegre, divertida, inteligente, inocente, mas aquele momento que pareceu durar uma eternidade fez mudar a maneira como encaro agora toda a realidade desta vida. A mudança é reconhecida por todos aqueles que me viram nascer. Continuo alegre e divertido, mas é diferente. Já não é a mesma coisa. Olhando para trás, até nem me importo de ter passado todos aqueles anos em sofrimento, pois fizeram de mim a pessoa que sou hoje: Adulta, verdadeira, aberta a sentimentos, apaixonada, calma, compreensiva… diferente.
Depois de dois meses e meio no hospital, três consultas por semana durante seis meses e as velhas canadianas, voltei a ser operado. Desde aí, nunca mais. Recusei um pedido dos médicos para fazer uma operação meramente estética ao pé. Talvez seja o medo de rever aquela expressão na cara dos médicos e perder assim mais seis meses da minha vida, talvez seja o facto de me habituado à maneira de como o meu pé está, mas por enquanto, não farei outra operação. Talvez um dia mais tarde, quem sabe…

2 comments:

Anonymous said...

Já que estamos numa de sinseridade, não me faças chorar mais, lembro-me perfeitamente desses tormentos, mesmo estando do lado de fora.
jcb

MFC said...
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