Saturday, June 24, 2006

12º

Agora sim, começo a perceber o porquê de toda aquela tristeza e insatisfação que assombrava o homem que quase todos os dias entrava no café.
Passaram entretanto pouco mais de dois anos que aquele homem, aparentando uns cinquenta e tais anos, alto, meio gordo, sempre com um chapéu daqueles de quem vai à pesca e uma gabardina escura até aos joelhos entrava no café e se sentava sempre na mesma cadeira colocada numa mesa frente a uma janela que dava para o rio Tejo e para metade da cidade de Lisboa. Enquanto se sentava, colocava sempre sobre a mesa uns óculos, o jornal comprado momentos antes no quiosque em frente, uma caneta e um caderno, ao mesmo tempo que pedia um café. Chegado o café, tirava do bolso um cachimbo no qual colocava tabaco que pressionava constantemente antes de o acender. Suavemente colocava o cachimbo no canto da boca, puxando e largando o fumo com a calma de quem descansa numa tarde de verão, encostado numa árvore do jardim em frente ao lago.
Com a chávena do café numa mão, passava os olhos pelo jornal, folheado muito rapidamente com a outra mão. O cheiro do cachimbo pairava agora por quase todo o café. Notava-se à primeira vista que o interesse em ler o jornal não era muito. Parecia que havia algo pelo qual ele apressava aquela leitura. E assim era. Uma vez terminado o café, afastava o jornal e pegava aquele caderno pequeno com capa rija em tons de castanho mel com uma aba castanha mais escura. Pegava então na caneta e começava a escrever. Enquanto isso, continuava a fumar o longo e esguio cachimbo de madeira. Raras eram as vezes que não escrevesse qualquer coisa assim que pegasse na caneta. Talvez fosse uma data, um número de um capítulo, um título, não sei. Sei que logo após esse rabisco, olhava para fora da janela. À primeira vista parecia estar a admirar toda aquela cidade à beira-mar plantada. Mas não. Quem quisesse reparar, notava que o homem fixava, com um ar pensativo e um pouco sofredor, um único ponto, não específico. Um ponto como se do infinito se tratasse. Um ponto que estava para além daquela magnífica vista. Intrigado, ia imaginando quem era aquele homem. Cheguei à conclusão de que seria um escritor buscando naquele ponto de fuga infinito a inspiração para o seu livro. Um daqueles escritores apaixonados pela sua profissão e que escrevem sobre a sua passagem pela vida, o que lhe deram e o que ela lhes tirou, de uma forma meio dramática e imaginativa, no entanto, sem esquecer que o mundo da literatura é difícil e que o pão do próximo dia depende da venda do livro no dia anterior.
Enquanto eu imaginava a sua vida, ele ajeitava o caderno e começava a escrever sem cessar durante largos minutos que por vezes se transformavam em horas. Nunca era certo o tempo de escrita. Notava-se, pouco antes de acabar, que a sua cara tomava uma expressão um pouco triste e agoniada, talvez pelo facto de não estar a gostar muito do que estava a escrever e ter medo que o livro não vendesse. E era assim quase todos os dias que eu ia até àquele café, logo pela manhã, pouco antes de entrar na escola. Os mesmos óculos, outro café, o mesmo cachimbo, outro jornal, o caderno. Só havia uma pequena diferença: trazia por vezes uma rosa vermelha que colocava por cima do caderno enquanto lia o jornal e cheirava enquanto escrevia. De resto, as manhãs eram iguais. Quase se podia adivinhar o que se iria passar no dia seguinte logo pela manhã na mesa junto à janela.
Uma bela manhã de Outono, em que o sol tentava perfurar o nevoeiro instaurado sobre a cidade, entrei no café e sentei-me, pedindo o pequeno-almoço. Quando olho para a janela, reparo que o suposto escritor de gabardina escura, chapéu e cachimbo ao canto da boca, escrevia já no seu livro. Nem o maior dos barulhos feitos naquele café o conseguiam demover da sua escrita. Parecia triste. Muito triste. Denotei desta vez uma expressão na cara dele que nunca tinha visto antes. Parecia irritado e nervoso à medida que lhe começavam a cair lágrimas pela face. Num acto de rebeldia, parou de escrever e partiu apenas com uma mão a caneta que tantos meses lhe tinha feito companhia naquela escrita infindável. Logo a seguir, rasgou a folha na qual escrevia, amarrotou-a e, à medida que repentinamente se levantava e pegava nas suas coisas para sair, mandou-a para o lixo. Saiu a correr levando tudo à frente, pelo que os homens do café depressa se apressaram a correr atrás dele reinvindicando o café que tinha ficado sem pagar. Fiquei sozinho no café. “Maluquices de escritor”, pensei eu devido a histórias que já tinha ouvido falar.
Todos aqueles meses a ver aquele homem a escrever no caderno suscitaram em mim um interesse incontrolável em saber o que ele escrevia, pelo que me levantei e fui em direcção ao caixote do lixo para pegar na então bola de papel ali deixada pelo homem. Lentamente a abri e reparei numa letra elaborada, mas um tanto ou quanto tremida. Ansioso pelo que estaria escrito naquela folha, comecei a ler

“Querida Lúcia:

Faz hoje precisamente 12 anos que me deixaste e
quiseste partir para aquele mundo ao qual chamavas de paraíso
e idealizavas belo, calmo e apaixonante. Sinto muito a tua
falta… Todos os meses tenho posto uma rosa vermelha sobre o teu
lado da cama para relembrar todos os meses que te levava flores
para casa. Tu adoravas…
Venho todos as manhãs ao café que tu adoravas vir quando
éramos solteiros e sento-me na mesma mesa em que estávamos
quando te pedi em casamento. Estavas linda essa tarde. Lembras-te?
Agora essa mesa apoia um dos vários cadernos que comprei desde a
tua ausência. Tenho-te escrito todos os dias desde que partiste à espera,
talvez, de uma resposta tua... Sinto mesmo muito a tua falta! Não aguento a dor que esta tua ausência provoca no amor que ainda sinto por ti.
Amo-te… quero estar contigo…”

Á medida que ia lendo o que estava escrito sobre as linhas amarrotadas daquela folha já suja pelo lixo, apercebia-me de que tudo aquilo que tinha pensado sobre o homem que acabara de sair porta fora estava completamente errado. Ele não era um escritor, nem escrevia um livro, muito menos estava preocupado com a situação do mundo literário. Preocupava-se, isso sim, em escrever, todos os dias, cartas para a sua amada, falecida há doze anos e que nunca conseguiu esquecer…
Começo agora a perceber o que é não esquecer o que verdadeiramente se ama, mesmo quando já não está connosco.
Quanto ao homem… nunca mais o vi, a não ser numa fotografia que vi num jornal do dia seguinte com o seguinte título: “Suicídio no rio Tejo”…

No comments: